O Super-Homem É Árabe — Sobre Deus, o Casamento, o Machão e Outras Invenções Desastrosas
Autora: Joumana Haddad
Biografia e Memórias
ISBN: 978-989-54367-2-9
176 páginas.
16,00€
Leia as primeiras 30 páginas.
Joumana Haddad: "Formatamos um modo de vida para corresponder às expectativas dos outros. Não quero viver assim. Estou-me nas tintas para o que os outros pensam"
Entrevista a Isabel Tavares — Sapo 24
Joumana Haddad conta que quando era miúda foi salva pelos livros. Talvez, mesmo sem saber, os livros que escreve salvem agora outras tantas vidas. De mulheres e de homens. Feminista e libanesa, acredita que as mulheres "têm uma característica que os homens raramente têm e que pode tornar a prática política muito melhor para o mundo: compaixão, empatia".
É mulher, é libanesa, é feminista, é política. Joumana Haddad não gosta que se fale no mundo árabe tout court, porque o mundo árabe é, afinal, constituído por 22 países, cada um com as suas diferenças. Mas sabe, para lá do perigo das generalizações, o valor da liberdade de expressão e, mais do que isso, da dignidade.
E é pela dignidade que luta. Diz que a imagem que se criou da mulher árabe é errada e que há muitas mulheres que, como ela, pensam pela sua cabeça, são independentes, livres. Lembra que não pode ser o ocidente a dizer como deve ser o oriente a viver, é cada um que tem de encontrar o seu caminho.
(Na foto, a sessão de apresentação, no dia 16 de Julho de 2019. Inês Pedrosa, editora da Sibila Publicações, apresenta a autora Joumana Haddad, ladeada pelo escritor e crítico literário José Mário Silva, quea seguir apresentou o livro. Na assistência, o editor Carlos Veiga Ferreira e os escritores Nuno Júdice, Maria Manuel Viana, PatrÍcia Reise Fernando DaCosta. O poeta Luís Filipe Castro Mendes e o editor João Rodrigues também estiveram entre os presentes — Nota e fotografia de Sibila Publicações.).
Fala sem rodeios, sem papas na língua, paninhos quentes ou outras artimanhas. É desassombrada. E tem um discurso pouco habitual até para muitos ocidentais que se julgam modernos. É alegre, tem sentido de humor. E domina sete línguas — árabe, arménio, alemão, italiano, inglês, francês e espanhol — o que veio a revelar-se muito útil na apresentação da edição portuguesa do seu livro "O Super-Homem é Árabe", que decorreu no final de terça-feira, 16 de julho, na Ler Devagar, na LxFactory, em Alcântara, onde o público estrangeiro é rei.
No livro, Joumana conta como descobriu que o mundo não precisa de homens de aço, de super-homens, mas de homens de carne e osso, dos "Clark Kents" da vida. E revela-se uma anti-Lois Lane, ela, que é jornalista de profissão, apesar de se ter licenciado em Biologia Genética, depois de desistir de Medicina. Mas os homens não têm a culpa de tudo. Afinal, foram as mulheres que os educaram para serem machões.
O livro, cheio de graça — e até com uma página dedicada a conselhos sexuais —, fala, no entanto, de um tema sério. E, além de contar na primeira pessoa uma parte da vida da autora, conta episódios passados com várias outras mulheres que, de outra forma, nunca teriam voz.
A sessão decorreu em francês por vontade da maioria, mas houve perguntas em inglês e em italiano. A apresentação coube a José Mário Silva, jornalista e crítico literário, e a Inês Pedrosa, enquanto editora e tradutora. Achámos que tudo valia a pena para maximizar os nossos 20 minutos e rapidamente esta se transformou numa entrevista colectiva, onde até o ex-ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, entrou. Esperamos que o leitor se sinta sentado ao nosso lado, a participar na conversa também.
Penso que a Joumana quer dizer algumas palavras antes de passarmos às perguntas e respostas [diz José Mário Silva já depois de um olhar 27, quando, logo a seguir à sua apresentação, disse que passariam às perguntas e respostas]...
Num momento triste da nossa história, em que muito poucas pessoas leem e que o mundo editorial sofre, é uma alegria para mim ver o livro editado em português. Não sei exactamente do que falaste, mas desconfio que disseste tudo. A escrita de um livro não termina quando ele é publicado, mas necessariamente quando ele se encontra com o leitor. Estou entusiasmada com a ideia de ouvir as vossas perguntas, mas não têm de ser perguntas sobre o livro, podem ser sobre mim, sobre a minha experiência ou sobre a parte do mundo que conheço.
"A questão é que sou transparente, escrevo o que penso. E não suporto as vidas duplas e as vidas secretas. O que escrevo, sou"
[Parece que vai parar mas logo retoma]
Devo dizer que haverá sempre reacções violentas a este género de escrita e, sobretudo, a esta maneira de pensar. É um pensamento contracorrente. Perguntam-me sempre: "Porque é que provocas?" E respondo sempre: Não é a provocação, é o facto de ter estas ideias, esta visão do mundo, estas convicções, e de elas não serem respeitadas. Se escrevesse sobre um casal sueco, ninguém ia considerar isso uma provocação. A questão é que sou transparente, escrevo o que penso. E não suporto as vidas duplas e as vidas secretas. O que escrevo, sou.
Se há temas proibidos?
No mundo árabe podemos dizer quase tudo, mas não podemos jamais tocar na questão da religião. E penso que é aí que podemos começar a fazer a mudança no mundo árabe, tocando na religião, separando a religião da esfera política e pública e tornando-a numa coisa privada e muito pessoal. Qualquer pessoa tem o direito de ter as suas convicções, mas a religião não deve ser utilizada como imposição de modo de vida, de governo.
Considera-se uma vítima?
Apesar de todas as reações violentas ou de todas as críticas que recebo, nunca me considerei uma vítima. E há também o outro lado, o número crescente de pessoas, homens e mulheres — porque muitas vezes pensam que só escrevo para mulheres, o que não é verdade — que me escrevem a dizer que escrevo aquilo que eles gostariam de dizer e não podem, ou que escrevem para me agradecer, ou para me apoiar. E isso dá-me uma força incrível, sinto-me verdadeiramente grata por este apoio.
"Se eu tivesse de escolher um título pelas causas pelas quais me bato, seria a dignidade humana"
Qual é a sua causa, o que a faz correr?
Se eu tivesse de escolher um título pelas causas pelas quais me bato, seria a dignidade humana. Não há outra coisa senão a dignidade humana. Isso quer dizer que luto pela liberdade de expressão, pela igualdade, conta a discriminação, contra a homofobia, contra o sexismo, contra o racismo, pela laicidade, por todos estes valores que acredito que são compatíveis entre si e que visam um mundo mais digno.
Este livro, "O Super-Homem é Árabe", é um livro contra os homens em geral e contra os homens árabes em particular, pretende ridicularizá-los?
Contei há uns dias a reação de um iemenita ao livro. Recebi uma carta do Iémen, que está dominado pela Arábia Saudita, em que um homem me dizia: "Bom dia, Joumana. Trabalho numa biblioteca, e o diretor da instituição disse-me que há um livro, O Super-Homem é Árabe, que chegou cá, não se sabe como, e que é muito perigoso, é preciso encontrá-lo e destruí-lo". E este homem contava que, com efeito, tinha encontrado o livro e tinha conseguido levá-lo para sua casa, à socapa, e lê-lo. E tinha gostado do que leu. Mais: sendo pai de três raparigas, gostaria muito de viver num mundo onde a dignidade das suas três filhas fosse respeitada. Só o facto de ler aquelas linhas fez-me esquecer, ignorar, não dar qualquer importância às críticas que tenho recebido. Não é por isto que escrevo — escrevo porque tenho necessidade de escrever -, mas publico por isto, por sentir que em algum lugar há alguém, talvez mais do que uma pessoa, que partilha esta visão e que há esperança, que podemos chegar lá. Talvez já não enquanto eu for viva, mas que iremos lá chegar.
"Eles sofrem, porque este machismo que lhe é inculcado desde a primeira infância também é uma forma de terrorismo: eles não podem chorar, não podem mostrar fraqueza, têm de ser os mais fortes"
Fazes uma crítica cáustica do machismo, mas fazes também um apelo a uma nova masculinidade. Já encontraste indícios desta nova masculinidade — e talvez uma outra geração feminista? [a pergunta é de José Mário Silva]
Não penso que isso seja muito difícil. Sou mãe de dois homens, Mounir e Ounsi, de 27 e 20 anos. O facto de ter educado estes dois rapazes como as minhas convicções o permitiram, o que significa no respeito pelo outro, o outro diferente, o outro num mundo diferente, no respeito pelo poder das mulheres, no respeito pelas escolhas dos outros, tudo isto fez dois homens feministas — eles dizem-se feministas [sorri orgulhosa]. Tenho a certeza de que tu também, José Mário, pertences mais à raça Clark Kent do que à raça Super-Homem, senão não estarias a fazer a apresentação deste livro. Creio que a maneira como educamos os filhos pode ser uma forma de terrorismo. Sei que falo muitas vezes dos direitos das mulheres, da justiça, do que sofrem as mulheres numa parte do mundo, mas isso não quer dizer — e também já o escrevi — que os homens não sofram. Eles sofrem, porque este machismo que lhe é inculcado desde a primeira infância também é uma forma de terrorismo: eles não podem chorar, não podem mostrar fraqueza, têm de ser os mais fortes. Além disso, no mundo árabe é o homem que tem de providenciar o sustento da sua família, que é economicamente responsável pela família.
"Feminismo também quer dizer mérito. E os direitos vêm com responsabilidade"
Há feministas e feministas?
Digo muitas vezes às mulheres que falam de feminismo e que consideram, por exemplo, que feminismo quer dizer ficar sentada todo o dia e ter alguém que as sirva, que feminismo também quer dizer mérito. E os direitos vêm com responsabilidade. Antes de ser financeiramente independente, não podemos dizer que somos livres, que somos emancipadas. É o mínimo, evidentemente. Há o problema da lei, porque a mulher deve ser protegida pelo Estado a que pertence, no mundo árabe, mas também tem deveres... Conto muitas vezes esta história: um amigo veio confidenciar-me, quase em lágrimas, que a sua mulher lhe disse: "Todos falam nos direitos das mulheres, e eu sinto-me muito injustiçada, porque em vez de ter dois empregados em casa tenho apenas um". Aconselhei-o: "Deixa-a". Isto para explicar como os conceitos não são bem compreendidos.
E as outras?
Por outro lado, há muitas mulheres que se dizem pela igualdade de direitos, mas que não são feministas. Como se ser feminista fosse um insulto. É injusto: feminismo é humanismo. É o respeito, a dignidade de todos os seres humanos. Todos devemos ser feministas e humanistas, é o mínimo. É esta a nova masculinidade que prego, para lá de todas as diferenças que existem entre os dois sexos e que são para mim, verdadeiramente, ínfimas. São apenas uma pequena parte daquilo que somos. O que somos é a vida que vivemos, os valores que respeitamos, as causas que defendemos e todas estas maneiras que temos de viver no mundo e de existir e de educar os nossos filhos e a forma de tornar melhor o que está ao nosso redor. Não melhor em termos de ser mais célebres, estar acima de, mas melhor em termos de bem-estar geral, o resto não faz sentido. É isto a nova masculinidade e a nova feminilidade. Temos todos essa responsabilidade.
"Esta língua [francês] foi como uma janela para um mundo diferente e isso enriqueceu-me muitíssimo"
[Não me vou daqui embora sem perguntas. E vocês também não, são meus reféns. Têm de fazer perguntas, diz Joumana, eloquente. E na plateia alguém cede] Por que razão escreve em francês?
O Líbano é um país francófono, o francês faz parte da nossa cultura e da nossa herança. Não vou entrar na causa, que é a colonização, evidentemente, mas toda a vida falei o francês na minha vida pessoal, e se não o fiz na presença de outros libaneses foi apenas por uma questão de respeito, porque sempre vi o facto como uma oportunidade. Falando de mim, pude ter acesso à literatura francesa, americana, italiana ou espanhola, através do francês. Esta língua foi como uma janela para um mundo diferente e isso enriqueceu-me muitíssimo. E por isso nunca considerei o uso do francês uma falta de respeito para com a minha língua árabe. Adoro a língua árabe. Percebo esse ponto de vista, porque há muitos escritores que escrevem numa língua estrangeira para fugir de dizer certas coisas em árabe. Mas é por isso que sempre que publico um livro em inglês ou em espanhol ou em italiano insisto em publicá-lo ao mesmo tempo em árabe, porque não quero ser acusada de querer dizer algumas coisas ao ocidente e de não as dizer à minha própria cultura. Digo tudo e digo-o em árabe e noutras línguas.
[Joumana aproveita e desmistifica outras acusações]
Outra acusação é que quando escrevo noutra língua estou a cortejar o ocidente. Nada disto faz sentido. Escrevo na língua que me inspira. Escrevo poesia na língua árabe, que é aquela que chama, escrevo ensaios em inglês, escrevo livros para crianças em italiano, publiquei uma antologia de poesia libanesa em espanhol... Abandono-me. Não gosto destas limitações e nem deste conceito de língua materna. Compreendo, respeito, mas pessoalmente adoro a descoberta. Penso que no mundo árabe, não sei como é aqui, damos demasiada importância à vida do outro, não só no campo intelectual, mas nos restantes. Ditamos, formatamos um modo de vida para corresponder às expectativas dos outros. O que é isto? Eu não quero viver assim, jamais, é uma prisão. Estou-me nas tintas para o que os outros pensam. Mas agora que ouvi o José e a Inês fiquei muito frustrada por não me poder expressar na língua portuguesa. Tenho de aprender português, é isso [riso].
Como vê a situação das mulheres no mundo árabe? Porque há diferenças, não são todas tratadas da mesma forma nos diversos países. Onde é que a pressão é maior, como é no Líbano, onde as coisas são menos rígidas? [mais uma pergunta da assistência, outra vez de um homem]
Sei que pela aparência pode parecer que as mulheres no Líbano gozam de uma liberdade que outras mulheres, noutros países árabes, não têm. Mas é preciso dizer duas coisas: em primeiro lugar, é apenas aparência, porque as leis do Líbano são muito sexistas, são muito discriminatórias em relação à mulher — somos cidadãos de segunda — e, em segundo lugar, se há mulheres emancipadas, quer dizer, que parecem emancipadas, elas não são mais do que talvez 20% a 30%, pelo que não devemos generalizar. Pessoalmente, penso que as mulheres na Tunísia gozam de muito mais respeito e dignidade do que as mulheres libanesas, porque tiveram a lei do seu lado desde 1950/60, quando tiveram a oportunidade de ter um bom ditador, entre aspas, Habib Bourguiba, que era um feminista, e que deu às mulheres todos os seus direitos, até mais, o que fez com que, geração após geração, um mundo onde faltar aos direitos das mulheres seria impensável. E foi por isso, por exemplo, que quando os islamitas na Tunísia se preparavam para retomar os seus direitos, não conseguiram, porque as mulheres tinham expectativas de liberdade, de poder. Elas levaram cinquenta anos a acumular força. Isso nunca aconteceu entre nós, onde as mulheres se contentaram com poder vestir-se como querem, ir dançar... indícios de liberdade superficiais. Nunca tivemos acesso ao Estado ou aos nossos direitos nem a nossa identidade foi respeitada.
As mulheres, supostamente emancipadas em Itália e noutros países europeus, cedem todos os dias ao consumismo e ao poder da publicidade graças a um ideal de beleza que dita que as mulheres têm de ser belas, além de tudo o resto. O que pensa disto? [a pergunta, claro, é feita por uma italiana, Giuseppina]
A Giuseppina, para os que não perceberam, pergunta-me, mas já deu a resposta, o que penso da mulher que é vista como um objecto, um naco de carne, a mulher que tem de ser bela. Para explicar este modelo de mulher digo muitas vezes esta frase, que sei que é provocadora: ou bem que é necessário esconder-se completamente ou bem que é necessário expor-se de mais. Para mim não é contraditório, vai dar ao mesmo. É uma anulação da mulher, digamos assim. Anulamos a sua existência quando a escondemos ou quando a reduzimos a um objecto de contemplação, em ambos os casos ela não tem sequer o direito de respirar. Mas também não devemos esquecer que as mulheres têm a sua quota parte de responsabilidade por aceitar este tratamento. Falo com feministas ocidentais e digo-lhes: não deixem perder aquilo que ganharam nos anos 60 e 70, porque se paramos de lutar, voltamos para trás.
[E, por falar em Itália, Joumana lembra-se de outro grave problema]
Outro grande problema, que existe tanto em Itália como em Espanha [José Mário e a planteia logo fazem notar que é comum a Portugal] é o femicídio. A matança de mulheres, toda esta violência sobre as mulheres, é muito perigosa. O que vou dizer está longe de retratar essa gravidade, mas vou contá-lo. Certo dia, uma mulher sueca escreveu-me a dizer: "Não temos o mesmo salário que os homens, apesar de desempenharmos as mesmas funções". Estamos a falar de um país que consideramos ideal em matéria de direitos das mulheres, digamos assim. Ainda é preciso trabalhar muito em termos de justiça, de igualdade. Porque trata-se de justiça. Se faço o mesmo trabalho, se tenho as mesmas competências, é suposto receber o mesmo salário, ser paga da mesma forma, independentemente de ser homem ou mulher. E é preciso não esquecer que a Itália é um pouco especial, porque tem uma certa relação com a religião e uma proximidade com o Vaticano... E todos sabemos que o catolicismo não é muito gentil com as mulheres [risos].
Temos estado a falar de dignidade humana. Gostava de ter a sua opinião sobre um país para o qual todos olhamos quando se fala em igualdade de oportunidades, em defesa dos direitos humanos, e que tem actualmente um presidente que não tem qualquer respeito pela dignidade das mulheres, que ignora a sua própria mulher, que sexualiza todas as outras mulheres com quem se cruza e que tem agora uma polémica com quatro congressistas do sexo feminino. [A pergunta vem em inglês, e é feita por uma professora portuguesa que há muito ensina na Universidade de Berkeley].
Sigo essa polémica de perto. O que posso dizer? Fico perplexa com os Estados Unidos, porque sempre segui as questões políticas do país e... Disse que têm um presidente, mas tenho de dizer: quem é que admira uma pessoa assim? O que diz muito, aliás — e passa-se o mesmo com os outros — desses países, porque se olhar para aqueles que são eleitos, que fazem parte do nosso sistema político, fica espantada: há ganguesters, pessoas que mataram, que participaram em guerras civis, e que agora são deputados e ministros. Obviamente a situação nos Estados Unidos não é a ideal. E, devo acrescentar, esta ligação entre a religião e Estado, não haver uma separação real nos Estados Unidos entre a religião e o Estado, leva-nos de volta ao problema inicial: quando precisamos de jurar por Deus para nos tornarmos presidentes de um país — ou juízes ou seja o que for — significa que existe uma grande confusão. Ao mesmo tempo, temos o movimento #MeToo, que agora está a acalmar. Espero que continuem a batalhar, porque precisamos dele. Mas pelo menos vocês podem dizer, e perdoem-me a expressão, fuck you, Mr. President. Podem insultar o vosso presidente. Nós não podemos insultar o nosso presidente, se o fizermos somos presas. Vocês têm essa liberdade de expressão nos vossos países, portanto, por favor usem-na para despertar a consciência das pessoas sobre o que se passa. Não apenas nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. E penso que os americanos têm de se abrir a outras culturas, em vez de estar focados apenas em si mesmos. Sei que é um país enorme, sei que é uma situação complicada, mas... A sério, tenho pena dos americanos. Tenho pena que tenham Trump como presidente. Lamento muito.
"Mas pelo menos vocês podem dizer, e perdoem-me a expressão, fuck you, Mr. President. Nós, se o fizermos somos presas"
Portugal está neste momento a começar a discutir a questão das quotas para algumas minorias: negros, ciganos, deficientes — palavras que já usamos pouco por serem consideradas politicamente incorrectas. É a favor ou contra?
A favor, claro. Tudo isto pertence ao tema da dignidade humana. Combater o racismo, o classismo, a discriminação baseada em alguém que tem uma incapacidade. Por exemplo, vemos isso na nossa vida política: não temos quotas, quotas que além disso são aplicadas na Arábia Saudita, onde há 30% de mulheres no Parlamento — no Líbano temos não chega a 1%: seis mulheres em 228, cerca de 0,5%. Num país onde as mulheres recentemente podem conduzir um automóvel, nem acreditam que é um país árabe. Por isso digo que é preciso ir além desta primeira camada, desta crosta da liberdade e escavar para perceber verdadeiramente a dimensão das coisas. Há muitas mulheres que começam a lutar pelos seus direitos, mas é só o início, não apenas no Líbano, mas em todo o Médio Oriente. É muito complicado e cada vez que falamos nos direitos das mulheres a primeira resposta é como se isso não fosse um problema, vem em décimo numa lista de prioridades.
Fala muito na justiça ou na falta de justiça. Acredita que um mundo liderado por mulheres pode ser diferente de um mundo liderado por homens? Há uma correlação entre felicidade ou bem-estar ou justiça e as mulheres no poder?
Leio muitas vezes sobre esta capacidade multidisciplinar das mulheres, estudos que mostram que a mulher é capaz de desempenhar uma quantidade de tarefas simultaneamente, de focar-se em mais do que um assunto ao mesmo tempo, tudo isso. Mas como não gosto de generalizações, porque acredito que depende de cada um, também há homens com esta capacidade multitasking, também há homens que são grandes políticos, como há mulheres que são grandes políticas. Mas aquilo em que acredito é que as mulheres têm uma característica que os homens raramente têm — e não digo que não haja quem a tenha — e que pode tornar a prática política muito melhor para o mundo, que é a compaixão, a empatia — alguns poderão chamar-lhe emotividade. Isto torna-as mais aptas a sentir o que os outros sentem, e isso é uma vantagem. Sou uma grande admiradora da primeira-ministra da Nova Zelândia [Jacinda Ardern], que é extraordinária. Ela governa com amor, está a usar o amor para governar e isto é muito inteligente. Não é uma coisa de mulher, é uma coisa inteligente. Porque as pessoas estão fartas do ódio e da divisão e de ter medo umas das outras. E acredito, sem querer generalizar, que as mulheres têm mais capacidade de dar amor: porque são mães, são dadoras, é a sua natureza. Mas não é que eu queira viver num mundo apenas liderado por mulheres. Quero viver num mundo liderado por pessoas boas, quer sejam homens ou mulheres. Embora acredite que temos de dar às mulheres uma oportunidade, e isso ainda não aconteceu. A maioria dos políticos, mesmo no mundo ocidental, são homens. Então, vamos integrar as mulheres nisto. E é por isso que as quotas são muitas vezes importantes, porque se o ambiente — como acontece no Líbano — não é propício a essa integração, pelo menos existe uma regra que vai obrigar a essa participação.
Participou nas eleições no seu país e quase foi eleita. Se tivesse sido eleita, que medidas teria tomado imediatamente?
O meu programa era baseado nos direitos humanos. Sei que muitos políticos no Líbano falam no combate à corrupção, em fazer a electricidade chegar a todos, temos ouvido nisto nos últimos 50 anos. Mas o meu primeiro passo, o meu foco, seria separar o Estado da religião. Esse seria o ponto principal, porque então sim, não seria possível eleger líderes corruptos, porque eles são também figuras políticas. Uma pessoa seria escolhida por representar determinado grupo, de facto, e não por pertencer a esta ou àquela religião. O meu primeiro projeto, por isso, seria acabar definitivamente com a promiscuidade entre Estado e religião.
O que significa a palavra Joumana?
É a pérola perfeita, sem defeito.
Quais seriam as suas hipóteses se fosse uma mulher feia?
Olhe... Aquilo que eu recebi por ser bonita foram sobretudo críticas por usar a beleza ou o meu aspecto exterior para me tornar popular. Não quero viver num mundo em que o meu aspecto seja a base para me julgarem. Querem julgar-me? Julguem-me pelo meu comportamento, pelos meus actos, pelas minhas ideias, pelas minhas convicções, por aquilo que faço com a minha vida. A minha aparência não é exactamente uma escolha minha, portanto não deveria ser nem uma acusação nem tampouco uma vantagem, porque eu não a escolhi. Na verdade, não gosto deste género de pergunta. E conheço muitas mulheres que não são bonitas e são bem sucedidas, enquanto mulheres e enquanto profissionais.
As pessoas não gostam de mulheres fortes, sentem-se desconfiadas. Precisam de a ouvir pedir ajuda, de a sentir indefesa. Se for uma mulher forte e confiante é uma cabra.
Porque é que as mulheres no poder são tantas vezes detestadas? Aconteceu com Margaret Thatcher, com Angela Merkel, com Dilma Rousseff, para dar alguns exemplos.
É uma coisa paternalista. E até as mulheres estão habituadas a ver os homens no poder. Por isso, quando as mulheres estão no poder ou em postos de liderança, as outras mulheres não gostam imediatamente. É como se precisassem de ser fracas para serem gostadas. As pessoas não gostam de mulheres fortes de uma maneira geral, não apenas na política, mas em tudo. Sentem-se desconfiadas ao pé de mulheres fortes, precisam de ver uma dama em apuros, precisam de a ouvir pedir ajuda, de a sentir indefesa. Se for uma mulher forte e confiante é uma cabra.
Tem uma tatuagem no braço. Posso saber o que significa?
Tenho imensas. Esta significa liberdade em árabe, esta tem o nome dos meus dois filhos, esta é sobre Lilith, a primeira mulher, antes de Eva, e tenho outras mais.
"Há muita gente que é livre de cabeça, mas depois não o é na sua vida de todos os dias e tem medo de mostrar como pensa ou o que quer"
A liberdade aprende-se?
Aprende. Não é uma coisa com que se nasça, necessariamente. Apenas os afortunados nascem num ambiente que lhes permite ser livres. Mas muitos nascem num ambiente que os ensina a estarem e a manterem-se acorrentados em vez de serem livres. Pessoalmente, comecei a aprender a liberdade nos livros, na literatura. Foram os livros que me ensinaram isso. No meu primeiro livro, Eu Matei Xerazade — Confissões de Uma Mulher Árabe em Fúria, falo de como quando eu era pequena os livros me salvaram a vida e aprendi a ser livre. E é como, passo a passo, uma vez livre na nossa cabeça, arranjamos coragem para ser livres também na nossa vida. Porque há muita gente que é livre de cabeça, mas depois não o é na sua vida de todos os dias e tem medo de mostrar como pensa ou o que quer. Acho isso triste e uma pena. Porque é que alguém há de viver uma vida baseada naquilo que outro quer para si e não naquilo que ela que para si própria? Cada um devia tentar ir atrás dos seus sonhos, das suas convicções, em vez de tentar satisfazer os outros.
Tem um livro preferido?
Adoro imensos livros. Tenho um livro que mudou a minha vida, que é Justine [ou Os Infortúnios da Virtude], do Marquês de Sade. Continuo a ter livros preferidos até hoje, porque continuo a descobrir novos livros todos os dias. Adoro António Lobo Antunes e adoro Clarice Lispector, do Brasil. E adoro Fernando Pessoa, também.
Como é viver em guerra? E consegue ver o Líbano a viver em paz, algum um dia?
É por isso que me levanto todos os dias e é por isso que não deixo o Líbano para viver no estrangeiro, porque poderia facilmente ir viver para outro país, tenho até nacionalidade europeia. Mas não quero, e é por isso que vivo lá há quase 15 anos, porque acredito no Líbano em paz. Não sei se vai acontecer nos próximos vinte anos, mas sei que todos os dias estaremos mais perto se acreditarmos nisso e por isso não devemos desistir da ideia. O ter crescido com a guerra é uma coisa que não nos deixa nunca mais. Acabei de publicar um romance sobre isso, com sorte também será publicado em português.
É o livro em que conta a história da sua avó, que se suicidou?
Sim. Começa com a minha avó, mas atravessa quatro guerras e quatro gerações. Nesse livro falo muito do que é crescer em guerra. Outro dia um jornalista perguntou-me, porque escrevi um livro sobre poetas que se suicidaram, com 700 páginas, sobre o suicídio da minha avó, e dizia-me: "Sabe, fala do suicídio como se fosse uma coisa naturalíssima". E respondi-lhe: "Quando se cresce num mundo como o meu mundo, a morte é normal, é como se vive, as pessoas morrem à nossa volta todos os dias e nós temos medo de perder aqueles que amamos".
E isso é assustador? Suponho que para nós sim... Este é o período de paz mais longo na história da Europa, a ameaça da guerra está sempre a pairar...
[Bate na madeira] Não, não. Não vai acontecer. Penso que já foram além disso. Acredito mesmo nisso. Tiveram o vosso quinhão. Mas sabe, é engraçado, se me perguntarem se prefiro ver um filme de guerra ou um filme de amor, prefiro ir ver o filme de guerra. E sempre que há um filme sobre guerra adoro ir ver e também gosto de ler livros sobre o tema. Porque quero perceber... Não sei como sobrevivi. Neste romance, conto que as pessoas que sobrevivem às guerras vivem como se tivessem bombas dentro de si e nunca sabem quando vão rebentar.
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